sexta-feira, 3 de junho de 2011

Militar, calar, matar


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Quase não dormi na noite passada. Um livro me deixou dando voltas na cama, olhando o teto quadriculado da minha casa. “O homem que amava os cães”, a novela de Leonardo Padura, eletriza pela sua sinceridade, pelo ácido corrosivo que lança sobre a utopia confusa que quiseram nos impor. Não há quem conserve a calma depois de ler os horrores daquela União Soviética que nos fizeram venerar quando meninos. As intrigas, as purgas, os assassinatos, o exílio forçado, mesmo que sejam lidos em terceira pessoa tiram o sono de qualquer um. E se, além disso, viu seus pais acreditarem que o Kremlin era o guia do proletariado mundial e soube que o presidente do seu país tinha – até pouco tempo – uma foto de Stalin no seu próprio gabinete, então a insônia se torna mais persistente.


De todos os livros publicados nesta Ilha, atrevo-me a dizer que nenhum, como este, tenha sido tão devastador dos pilares do sistema. Talvez por isso na feira do livro de Havana só foram distribuídos 300 exemplares, dos quais apenas 100 chegaram às mãos do público. É difícil – nestas alturas – censurar uma obra que veio a luz numa editora estrangeira e cujo autor continua vivendo na sua Mantilla de estrada empoeirada. Pela visibilidade que alcançou fora da Ilha e porque se torna quase impossível continuar subtraindo a cultura nacional sem que esta fique despovoada, foi que nós leitores tivemos a sorte de testemunhar suas páginas. O assassino de Trotski, nelas, revela-se a nós como um homem aprisionado pela obediência do militante, que acredita em tudo o que dizem os seus superiores. Uma história que nos toca muito de perto e não só porque nosso país serviu de refúgio a Ramón Mercacer nos seus últimos anos de vida.


Padura coloca na boca do narrador que a sua geração foi a “dos crédulos, a dos que romanticamente aceitaram e justificaram tudo com a visão voltada para o futuro”. A nossa, contudo, coube amamentar-se da frustração dos seus pais, olhar o pouco que alcançaram os que uma vez foram se alfabetizar, entregaram seus melhores anos, projetaram para seus filhos uma sociedade com oportunidades para todos. Não há quem saia indene disso, não há quimera social que se sustente ante realidade tão obstinada. A longa madrugada virando na cama me deu tempo para pensar não só na lixeira escondida sob o tapete de uma doutrina, mas também, ainda assim, em quantos desses métodos são aplicados sobre nós e quão profundamente o estalinismo se instalou em nossas vidas.


Há livros – advirto-lhes – que nos abrem tanto os olhos que já não podemos voltar a dormir em paz.


Traduzido do espanhol por Humberto Sisley de Souza Neto


Fonte: Blog da cubana Yoani Sánchez – Generacion Y – Clique aqui para conferir a matéria original em espanhol



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